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Da constipação de escorpiões aos tatus que bagunçam a arqueologia: IgNobel já premiou brasileiros por estudos que fazem rir e pensar

Um tatu-peba (Euphractus sexcinctus). Espécie tem hábitos noturnos e passa o dia dormindo em suas tocas, saíndo só à noite na busca por alimentos. Rewild B...

Da constipação de escorpiões aos tatus que bagunçam a arqueologia: IgNobel já premiou brasileiros por estudos que fazem rir e pensar
Da constipação de escorpiões aos tatus que bagunçam a arqueologia: IgNobel já premiou brasileiros por estudos que fazem rir e pensar (Foto: Reprodução)

Um tatu-peba (Euphractus sexcinctus). Espécie tem hábitos noturnos e passa o dia dormindo em suas tocas, saíndo só à noite na busca por alimentos. Rewild Brazil Pesquisas que parecem improváveis à primeira vista às vezes são exatamente as que abrem portas para grandes respostas. Foi assim que ao longo dos últimos anos alguns trabalhos conduzidos por pesquisadores brasileiros entraram para a história do IgNobel, o prêmio que celebra estudos que primeiro provocam risos e, em seguida, reflexão. Em 2008, o arqueólogo Astolfo Gomes de Mello, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), foi o primeiro brasileiro a ser laureado ao demonstrar, com um experimento simples no Zoológico de São Paulo, que tatus são capazes de desorganizar completamente a estratigrafia de um sítio arqueológico, movendo cacos de cerâmica. 🪨ENTENDA: Estratigrafia é a parte da geologia que estuda as camadas de rochas e sedimentos. Os pesquisadores da área buscam entender como e quando elas se formaram. Doze anos depois, foi a vez do biólogo e especialista em psicologia evolucionista Marco Antonio Corrêa Varella, também da USP, com uma pesquisa que ficou conhecida por ligar a frequência de beijos entre casais à desigualdade de renda em 13 países. O trabalho rendeu o IgNobel de Economia. Já em 2022, a bióloga Solimary García Hernández, colombiana formada no Brasil, e seu orientador, o ecólogo Glauco Machado, do Instituto de Biociências (IB-USP), ganharam o IgNobel de Biologia ao desvendar o custo extremo, e ainda assim adaptativo, de um mecanismo de defesa radical em escorpiões do gênero Ananteris: a autotomia da “cauda”, que salva o bicho de um ataque, mas o condena a uma constipação crônica e à morte em até um ano. Por fim, no ano passado, o brasileiro Felipe Yamashita, natural de Botucatu (SP), levou prêmio de botânica após descobrir que a planta Boquila trifoliolata pode copiar as folhas de plantas artificiais ao seu redor. Neste ano, a edição do prêmio foi anunciada nesta semana sem brasileiros entre os vencedores. Mas o g1 conversou com os autores dos quatro trabalhos já laureados. Troféu do Prêmio Ig Nobel 2025 é exibido em Boston, em 17 de setembro de 2025. A premiação celebra pesquisas curiosas que também podem ter aplicações práticas. AP Photo/Charles Krupa Escorpiões constipados No caso dos escorpiões, a história começa com um dilema evolutivo e termina em um paradoxo elegante. Isso porque quando predadores como roedores e corujas capturam escorpiões Ananteris (um gênero pouco conhecido de escorpiões raros) pela cauda, o aracnídeo se agarra ao chão e se contorce até que a parte final do seu abdome — onde estão o ferrão, o ânus e trechos do sistema digestivo e nervoso — se desprende de forma permanente. Diferentemente das lagartixas, porém, nada volta a crescer. O animal perde o aguilhão (espécie de "ferrão") com que caça e se defende e passa o resto da vida incapaz de defecar, acumulando fezes no abdômen até morrer entre 7 e 12 meses depois. "[No nosso estudo], vimos que escorpiões sem o aguilhão tiveram mais dificuldade para subjugar presas grandes, mas ainda conseguiam capturar presas pequenas usando apenas as pinças frontais, chamadas pedipalpos. Esse efeito negativo foi mais forte nos machos, que são menores que as fêmeas", conta Machado ao g1. Apesar dessa descoberta, o pesquisador explica que, embora à primeira vista isso parecesse uma sentença de morte, a situação acabou dando um tempo extra para que os machos, sobretudo, continuassem se reproduzindo. Em testes controlados com o Ananteris balzani, ele e seus colegas observaram, ao longo de meses, como escorpiões com e sem cauda se saíam na locomoção, na caça e na reprodução. No curto prazo, a velocidade não mudou; no longo prazo, a perda da cauda reduziu a velocidade apenas nos machos, um resultado contraintuitivo, já que as fêmeas engordaram mais pela constipação. Na caça, os escorpiões sem ferrão tiveram dificuldade com presas grandes, mas ainda conseguiram abater as pequenas usando as pinças. E na reprodução veio a maior surpresa: mesmo sem cauda, os machos adaptaram o “cortejo” e conseguiram deixar o esperma normalmente, mantendo as chances de reprodução. "Já para as fêmeas, o resultado foi bem diferente. Como os escorpiões são vivíparos (ou seja, dão à luz filhotes vivos), esperávamos que a constipação causada pela perda da cauda reduzisse o espaço interno disponível para os embriões", acrescenta ele. E de fato, elas produziram menos filhotes, tiveram sobrevivência menor da prole e muitas morreram antes do parto. Em 2022, pesquisa sobre técnica de sobrevivência de escorpiões rendeu o Prêmio IgNobel aos cientistas da USP. Reprodução/Twitter Sério e cômico Outra pesquisa que também rendeu um prêmio a um brasileiro começou em meados dos anos 1990, em um trabalho de campo no Parque Indígena do Xingu. Na época, fragmentos de cerâmica começaram a aparecer na terra recém-expelida de algumas pequenas tocas do parque. "Aquilo ficou na minha cabeça por muito tempo. E ao mergulhar na bibliografia sobre o assunto me deparei com observações sobre todos os tipos de animais afetando os sítios arqueológicos, mas obviamente não existia nada sobre tatus", diz Astolfo Gomes. Intrigados com a situação, ele o pesquisador José Carlos Marcelino enterraram, de forma controlada, pedras lascadas e cacos em um “sítio falso” dentro do recinto de um tatu-peba (Euphractus sexcinctus) no Zoológico de São Paulo. Cinquenta dias depois, reescavaram o local e mediram o quanto os objetos tinham sido movidos. Em plena hora de visitação, e sob o coro de crianças curiosas perguntando o que estava acontecendo, o experimento mostrou que as garrinhas dos tatus promoveram um vaivém caótico de materiais, empurraram os artefatos para cima e para baixo, por dezenas de centímetros. Em termos práticos, para arqueologia a pesquisa comprovou que onde há mamíferos escavadores, a posição de um objeto no solo não é, sozinha, uma pista confiável de idade. Esse tipo de estudo é atemporal, não tem prazo de validade, porque se refere ao comportamento de um animal sobre materiais arqueológicos. Portanto, a aplicação dos resultados vai ser util em qualquer lugar que haja tatus e materiais arqueológicos. Crianças brincam às margens de rio no Parque Indígena do Xingu. Arquivo/Ligia Vieira/Arquivo Pessoal Beijos e desigualdade Já a pesquisa de Marco Antonio Corrêa Varella, que rendeu o IgNobel de Economia em 2020, partiu de hipóteses evolutivas sobre o papel do beijo em relacionamentos humanos. Ao g1, ele explica que a motivação não foi buscar um resultado “pitoresco”, mas testar se o beijo serviria mais para avaliar novos parceiros ou para consolidar vínculos já estabelecidos. O estudo mostrou que “casais estabelecidos se beijam mais, valorizam mais o beijo” e que, em países com maior desigualdade de renda, onde há mais competição por parceiros alternativos, “os casais se beijam mais, o que também apoia a ideia de manutenção da relação”. Para ele, esse resultado tem implicações que vão além da biologia: “o beijo romântico funciona como reforço do vínculo amoroso em todos os contextos, só que contextos de incerteza sobre o futuro da relação exigiram mais dessa função adaptativa”. As implicações são variadas, tanto ajudar na terapia de casal quanto relembrar as pessoas que viver é maior do que apenas se esgotar no trabalho. Por fim, o IgNobel de 2024 em Botânica destacou o trabalho do brasileiro Felipe Yamashita, que mostrou como a trepadeira Boquila trifoliolata, encontrada no Chile e na Argentina, é capaz de imitar folhas de outras espécies — inclusive modelos artificiais de plástico. “Conforme as plantas cresceram, elas começaram a imitar os modelos de plástico. Isso levou a nossa equipe a considerar uma nova hipótese: a planta pode ter algum tipo de ‘visão’ ou percepção do ambiente ao seu redor”, explicou o pesquisador. A ideia de que plantas poderiam ter algum tipo de percepção visual não é recente. Já no início do século XX, o botânico austríaco Gottlieb Haberlandt e Francis Darwin, filho de Charles Darwin, falavam em uma espécie de “ocelo” ou “olho primitivo” nas plantas. O conceito acabou caindo em desuso, mas voltou a chamar a atenção da comunidade científica nas últimas décadas. Pesquisas recentes inclusive mostram que esse mecanismo não seria impossível. Algumas cianobactérias, como a Synechocystis, conseguem usar suas próprias células como lentes para focar a luz, funcionando de maneira semelhante a um olho rudimentar. Entre as plantas, um exemplo é a Arabidopsis, que produz proteínas ligadas a estruturas básicas de visão presentes nos plastoglóbulos, corpúsculos relacionados à cor das folhas. O cientista brasileiro Felipe Yamashita, premiado com o IgNobel por causa da sua pesquisa sobre uma espécie de planta conhecida há mais de 200 anos e usada por povos indígenas do sul da América do Sul. Felipe Yamashita Curiosidade premiada Juntos, todos os trabalhos brasileiros reconhecidos pelo IgNobel mostram que a premiação não é apenas uma piada científica: é também um palco para lembrar que perguntas improváveis podem render respostas sólidas. A professora Maria Mercedes Okumura, da USP e membro do comitê, faz questão de enfatizar esse ponto: “Muitas pessoas não entendem como a ciência funciona. O IgNobel serve para chamar a atenção para a criatividade e ousadia dos cientistas”. Ela compara inclusive a distinção com uma vitrine que mistura humor e rigor. “Não é o equivalente ao Framboesa de Ouro [um prêmio humorístico dos Estados Unidos que celebra os piores filmes do ano]. Nós não julgamos o mérito científico, e sim destacamos artigos revisados por pares que sejam inusitados, originais e engraçados”. No caso dos escorpiões, Machado lembra inclusive que a história nasceu de uma lacuna real: a então mestranda Solimary García Hernández identificou um fenômeno, a autotomia da “cauda” nos Ananteris, algo a época pouco explorado do ponto de vista comportamental. A repercussão veio em ondas. “Foram mais de três semanas de entrevistas”, recorda o pesquisador, que viu o tema migrar de artigos especializados para telejornais e podcasts. O saldo, na avaliação dele, é didático: a curiosidade rende manchete, mas o que sustenta o assunto é o rigor. “Base teórica sólida, protocolos elegantes, análises sofisticadas”, enumera e, ainda assim, sem milagre: o volume de citações dos artigos não explodiu com o prêmio. Já para Araujo a marca do IgNobel ficou menos no currículo e mais na memória coletiva. “Foi bacana ser reconhecido como ‘aquele cara que ganhou o IgNobel’”, conta, dizendo que a brincadeira reaparece em corredores de congressos até hoje. Por fim, o professor Marco Antonio Corrêa Varella vê desdobramentos práticos do seu estudo e, apesar de criticar o pouco espaço para áreas interdisciplinares, defende uma bússola clara: ciência aberta, internacional, replicada e sem vieses políticos. "Em suma, é preciso uma formação científica internacional sólida rigorosa interdisciplinar e atualizada para fazer avanços dignos de premiações internacionais". Público lança aviõezinhos de papel durante a 35ª edição do Prêmio IgNobel, em Boston (EUA), em 18 de setembro de 2025. REUTERS/Brian Snyder Veja por categoria os vencedores da 35ª edição: Literatura: O prêmio foi para o médico norte-americano William B. Bean (1909–1989), que durante 35 anos registrou meticulosamente o crescimento de uma única unha, publicando artigos ao longo de décadas sobre velocidade e variações desse processo biológico. Psicologia: Pesquisadores da Polônia e da Austrália foram premiados por demonstrar que elogiar a inteligência de alguém aumenta temporariamente seu nível de narcisismo e faz com que nos sintamos únicos e especiais. Biologia: Pesquisadores internacionais observaram lagartos arco-íris em um resort à beira-mar de Lomé, capital de Togo, na África Ocidental, roubando fatias de pizza de turistas — com clara preferência pela versão de quatro queijos, uma adaptação alimentar bem inusitada. Nutrição: O prêmio foi para a pesquisa que mostrou como a dieta da mãe altera o sabor e o cheiro do leite humano, influenciando o comportamento dos bebês durante a amamentação — do ritmo de sucção às reações às mudanças de gosto. Agricultura: Cientistas japoneses comprovaram que pintar vacas com listras pretas e brancas, imitando zebras, reduz ataques de moscas, diminuindo o estresse dos animais. O estudo também abre caminho para alternativas ao uso de pesticidas. Física dos alimentos: Uma equipe europeia investigou o tradicional molho italiano “cacio e pepe” e descobriu que a concentração de amido da água do macarrão é decisiva para evitar que o queijo empelote, identificando até uma “fase mozzarella” em que a receita desanda. Engenharia/Design: Dois pesquisadores indianos receberam o prêmio por analisar como o mau cheiro de sapatos afeta a experiência de usar sapateiras e por sugerir mudanças simples de ventilação para eliminar o problema. Zoologia: Um grupo internacional foi reconhecido por mostrar que morcegos-da-fruta egípcios voam mais devagar e têm a ecolocalização prejudicada depois de ingerirem alimentos com álcool, algo comum em frutas muito maduras. Linguística/Comportamento: O prêmio foi concedido a um estudo que investigou como o consumo de pequenas doses de álcool pode aumentar a fluência ao falar em línguas estrangeiras, mesmo que a confiança cresça mais do que a pronúncia correta. Medicina alternativa: Pesquisadores receberam o prêmio por examinar ideias improváveis sobre dietas excêntricas, apelidadas de “teflon diet”. Pesquisadores comem macarrão ao receber o Prêmio IgNobel de Física por estudo sobre o “comportamento de fase do molho cacio e pepe”, em Boston (EUA), em 18 de setembro de 2025. REUTERS/Brian Snyder Destaques das edições anteriores Veja abaixo os estudos premiados nos anos anteriores: 2024: IgNobel 2024 premia pesquisas sobre mamíferos que respiram pelo ânus, 'pombos-mísseis' e trutas mortas 2022: pesquisadores da USP ganham com pesquisa sobre sexo entre escorpiões 2021: barbas amortecedoras, baratas e chicletes mastigados 2020: brasileiro é um dos premiados por pesquisa sobre beijos e desigualdade de renda 2019: pizza contra câncer e estudo sobre temperatura do escroto 2017: música intravaginal, gatos líquidos e orelhas grandes de idosos 2016: efeitos do uso de calças de poliéster, algodão ou lã na vida sexual de ratos 2015: 'frangossauro' e teste com picadas de abelha no pênis