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Schoenstatt, o movimento ultraconservador seguido pelo presidente eleito do Chile e que também está no Brasil

O padre alemão José Kentenich fundou Schoenstatt em 1914, quando era professor em um seminário localizado no vilarejo homônimo Cortesia Schoenstatt via BBC ...

Schoenstatt, o movimento ultraconservador seguido pelo presidente eleito do Chile e que também está no Brasil
Schoenstatt, o movimento ultraconservador seguido pelo presidente eleito do Chile e que também está no Brasil (Foto: Reprodução)

O padre alemão José Kentenich fundou Schoenstatt em 1914, quando era professor em um seminário localizado no vilarejo homônimo Cortesia Schoenstatt via BBC José Antonio Kast, presidente eleito do Chile, é um homem de profundas convicções religiosas. Ele deixou isso claro em seu primeiro discurso, logo após a divulgação dos resultados da votação de domingo (14/12), ao afirmar: "Nada seria possível se não tivéssemos Deus". "Nada acontece na vida, para nós que somos de fé, que não esteja em relação direta com Deus", prosseguiu. 📱Baixe o app do g1 para ver notícias em tempo real e de graça Em seguida, pediu àquele que considera seu criador que lhe concedesse "humildemente" a "sabedoria, a temperança e a força para estar sempre à altura" do desafio que assumirá em 11 de março de 2026, quando substituirá o atual presidente chileno, Gabriel Boric, no palácio presidencial La Moneda. Veja os vídeos que estão em alta no g1: Veja os vídeos que estão em alta no g1 LEIA MAIS: Kast adota tom conciliador e reduz expectativa sobre mudança radical no Chile Com Kast eleito, América Latina tem 6 países governados pela direita e 6 pela esquerda Essas foram 3 das 5 frases com conteúdo religioso pronunciadas por Kast, que tem 59 anos e também é advogado, ao longo de quase uma hora de discurso diante de milhares de apoiadores reunidos em Santiago para celebrar sua vitória nas eleições presidenciais. No entanto, nada disso deveria causar surpresa. O motivo? É que o político e vários de seus irmãos foram criados sob as diretrizes do Schoenstatt, um movimento católico ultraconservador com presença em mais de 100 países, incluindo todos da América Latina. Os vínculos do presidente eleito com o movimento começaram por meio de "seu irmão mais velho, Miguel", afirmou o filósofo chileno Álvaro Ramis Olivo à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) . Miguel Kast ingressou no Schoenstatt após conhecer alguns de seus integrantes durante seus anos de universidade. Mas outras fontes sustentam que o primeiro contato com o Schoenstatt partiu dos pais do político, Michael Kast e Olga Rist. Ambos eram profundamente religiosos e devotos da Virgem Maria, uma prática comum na Baviera alemã, de onde vieram. De um lugar bonito em um momento feio O Schoenstatt é "um movimento apostólico de renovação, nascido dentro da Igreja", com um "caráter mariano", segundo a definição em seu site oficial. "A formação de um novo homem e de uma nova comunidade que sirvam à Igreja e à sociedade" é o objetivo da organização, explicou o padre Felipe Ríos, coordenador do movimento nas Américas, à BBC News Mundo. O Schoenstatt foi fundado em outubro de 1914, poucos meses após o início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), pelo padre alemão José Kentenich (1885-1968). O movimento tem como objetivo formar uma "nova comunidade", com forte devoção mariana Cortesia Schoenstatt América via BBC O nome vem de um vilarejo localizado na região de Vallendar, às margens do rio Reno, no atual estado da Renânia-Palatinado, no oeste da Alemanha, próximo às fronteiras com Luxemburgo e Bélgica. Kentenich, que era membro da Sociedade do Apostolado Católico, mais conhecida como Padres palotinos, lecionava em um seminário que a ordem mantinha na localidade de Schoenstatt, palavra alemã que pode ser traduzida literalmente como "lugar bonito". O padre, junto a um grupo de estudantes, restaurou uma pequena capela situada nos jardins do seminário e pediu à Virgem Maria que a transformasse em um local de peregrinação. Uma das características do grupo é que, onde quer que estejam presentes, seus membros constroem réplicas idênticas à capela alemã. "Muito antes de cadeias de fast-food como o McDonald's descobrirem o efeito cultural de estabelecimentos totalmente idênticos, o Espírito Santo em Schoenstatt começou a fazer isso", afirma o site da organização, que informa existir atualmente 200 "santuários filiais" em todo o mundo. Mas o que é exatamente o Schoenstatt? É uma congregação religiosa ou algo diferente? "É uma organização dentro da Igreja Católica que surgiu com a ideia de que os leigos poderiam desempenhar tarefas semelhantes às das ordens religiosas, mas com autonomia em relação aos hierarcas eclesiásticos", explicou Ramis Olivo. "O movimento tem um ramo leigo — formado por pessoas que não tomaram hábitos religiosos/votos — e um ramo religioso, que inclui uma ordem sacerdotal e uma comunidade de mulheres leigas consagradas. Elas se assemelham muito às freiras, embora não o sejam, já que não fazem votos", acrescentou Ramis Olivo, especialista em teologia, que é reitor da Universidade Academia de Humanismo Cristiano (Chile). Boric recebe Kast para transição no Chile Semelhanças e diferenças com o Opus Dei A historiadora italiana Alexandra von Teuffenbach, além de confirmar que o grupo é formado por "vários ramos", afirmou que alguns deles são "institutos seculares" — ou seja, organizações cujos integrantes, sem serem religiosos, se comprometem a viver em pobreza, castidade e obediência, ao mesmo tempo em que permanecem inseridos em seu ambiente social e profissional habitual. "Comparar o Schoenstatt com a Opus Dei é apropriado", afirmou a pesquisadora à BBC News Mundo, ao ser questionada sobre outros grupos católicos que poderiam ser considerados equivalentes. No entanto, Ramis Olivo alertou para diferenças significativas entre o Schoenstatt e a organização Opus Dei, fundada pelo padre espanhol Josemaría Escrivá de Balaguer (1902-1975). "Embora existam semelhanças, o Schoenstatt não tentou influenciar a política. Já a Opus Dei, durante o regime franquista na Espanha, aproveitou o contexto para posicionar seus membros em cargos estratégicos da economia e do sistema bancário, os chamados 'tecnocratas'", afirmou Ramis Olivo. Nas regiões onde Schoenstatt está presente, seus integrantes constroem réplicas da capela restaurada por seu fundador e onde o movimento nasceu, na Alemanha, em 1914 Cortesia Schoenstatt América via BBC Até a eleição de Kast, apenas um outro integrante desse movimento católico havia ocupado um cargo de alto escalão no Chile: seu irmão mais velho, Miguel, que atuou como ministro e presidente do Banco Central durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). "Esse grupo prioriza a vida familiar mais do que a vida pública", explicou Ramis Olivo. "E, embora compartilhe com a Opus Dei o rigor sexual e moral, não tem um tom tão culpabilizador. Não recorre a penitências como flagelações ou ao uso do cilício [instrumento de penitência corporal], como é denunciado no caso da Opus Dei", afirmou. "Tem forte presença entre as classes mais abastadas, mas também em setores médios, profissionais e empresariais. Não é progressista, e sim bastante conservador, embora em alguns aspectos apresente maior pluralismo ideológico do que outras organizações da Igreja", concluiu. O rótulo "ultraconservador" atribuído ao Schoenstatt por alguns setores da sociedade não preocupa Ríos, coordenador do movimento Schoenstatt nas Américas. "Somos um movimento dentro da Igreja católica e, portanto, seguimos suas diretrizes. Na minha opinião, não estamos entre os mais conservadores da Igreja", afirmou. A perseguição nazista e exílio no Vaticano A América do Sul foi a primeira região fora da Europa para a qual o Schoenstatt se expandiu, segundo registros da própria organização. Na primeira metade da década de 1930, um dos seguidores do padre Kentenich chegou à Argentina e, em 1935, juntaram-se a ele quatro Irmãs de Maria, integrantes de uma das organizações religiosas femininas que compõem o movimento. Quase simultaneamente, membros do Schoenstatt chegaram ao Brasil e, dois anos depois, o grupo já estava presente no Uruguai. Atualmente, o movimento católico atua em todos os países da América Latina, com exceção de "algumas ilhas do Caribe, as duas Guianas e o Suriname", afirmou Ríos. "Funcionamos principalmente a partir dos santuários; só entre Chile, Argentina e Brasil há quase 80", acrescentou o representante do Schoenstatt. Ele disse ainda que o movimento administra mais de uma dúzia de escolas em quatro países (Chile, Argentina, Equador e México), além de um hospital em Buenos Aires (Sanatório Mater Dei), e outras iniciativas voltadas "aos mais pobres". A expansão pela região foi impulsionada pelo próprio fundador, que visitou a América do Sul em várias ocasiões, segundo sua biografia. "O Chile, por exemplo, é um dos lugares onde Schoenstatt tem maior força internacional, porque seu fundador viveu aqui por um período", explicou Ramis Olivo. Em 1941, agentes da Gestapo (a polícia secreta nazista) prenderam o religioso por causa de seus ensinamentos e, meses depois, ele foi enviado ao campo de concentração de Dachau (Alemanha), onde permaneceu até o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Após o conflito, os anos de perseguição sofridos nas mãos dos nazistas conferiram novo prestígio a Kentenich. No fim da década de 1940, porém, setores da hierarquia católica alemã passaram a ver com preocupação a forma como ele dirigia o movimento e o controle que exercia sobre seus membros. "A autoridade suprema, isto é, o diretor-geral (Kentenich) e a superiora-geral, são os 'pais', ou seja, o 'pai da família' e a 'mãe da família'. As irmãs são filhas ou meninas. Mas, na prática, a 'mãe da família' está totalmente submetida à vontade do 'pai da família', que para todas as irmãs se equipara a Deus", alertou, em 1949, o monsenhor Bernhard Stein, então bispo auxiliar de Trier (Alemanha), em comunicação aos colegas da Conferência Episcopal Alemã. Além disso, algumas das irmãs acusaram o padre de ter abusado delas. Em 1951, o papa Pio 12 (1939-1958) afastou Kentenich de sua função no Schoenstatt e o enviou ao exílio nos Estados Unidos, onde permaneceu por 14 anos, até receber autorização para retornar à Alemanha. Ele morreu em 1965. "Os seguidores de Kentenich nunca negaram esse episódio, mas o apresentaram como um conflito de poder, no qual ele teria sido vítima de ciúmes e inveja de membros da hierarquia da Igreja", afirmou Ramis Olivo. Em 2020, a historiadora italiana Alexandra von Teuffenbach publicou o primeiro de dois livros dedicados ao Schoenstatt e a seu fundador. Na obra, a pesquisadora afirmou que Kentenich abusou sexualmente de uma integrante do Schoenstatt no Chile, em 1947. A acusação se baseia em informações registradas nos diários de um dos investigadores enviados pelo Vaticano na década de 1950 para apurar denúncias contra ele e o movimento, além de documentos dos arquivos do pontificado de Pio 12. A liderança do Schoenstatt nega as acusações, embora reconheça que alguns aspectos do comportamento de seu fundador são controversos. Para a historiadora, porém, os fatos sustentam suas conclusões. "No caso de Kentenich, o processo que levou aos decretos e ao exílio nos EUA, assim como à proibição de manter contato com as freiras, se baseia em motivações que não estão escritas nos decretos. Elas aparecem explicadas nos 'autos', nos quais estão detalhadas todas as provas encontradas. Foi com base nisso que os juízes [do Santo Ofício] tomaram sua decisão", afirmou. As denúncias apresentadas por Von Teuffenbach contribuíram para paralisar o processo de beatificação do padre, iniciado em 1975. "Quando a Igreja beatifica alguém, está dizendo: este homem ou esta mulher é um exemplo para todos. Reconheço que Kentenich escreveu coisas interessantes e sem dúvida realizou boas ações, mas de forma alguma gostaria que ele fosse considerado um exemplo de vida cristã", concluiu a historiadora.