Por que restaurantes em SP apostam em DJs para transformar jantar em 'experiência social'
Sets de DJ Trusty mesclam soul, funk e clássicos "brasileiros esquecidos", diz ele João de Mari/g1 Numa noite de quinta-feira em Pinheiros, na Zona Oeste de S...

Sets de DJ Trusty mesclam soul, funk e clássicos "brasileiros esquecidos", diz ele João de Mari/g1 Numa noite de quinta-feira em Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, o salão da Oli Pizza parece cena de balada discreta. Entre garrafas de vinho, drinks autorais e pizzas de fermentação natural, um DJ toca vinis de soul e MPB em um volume nem tão baixo nem tão alto, o suficiente para permitir uma conversa. Em São Paulo, restaurantes de diferentes perfis estão apostando em DJs residentes como estratégia para se destacar em uma cena gastronômica cada vez mais competitiva — mais do que entretenimento, a música é tratada como parte da experiência de comer. 🎵 Um DJ residente é um artista que tem uma ligação fixa e regular com um clube, bar, festa e, neste caso, restaurante, tocando lá regularmente, em contraste com DJs convidados, que atuam pontualmente. De acordo com sociólogos e especialistas em comportamento urbano, esse fenômeno acompanha tendências globais de “gastronomia como entretenimento”. Em vez de competir somente pelo prato ou pelo preço, os restaurantes se diferenciam pelo valor simbólico de serem espaços de convivência — quase como uma fusão de bar, balada e restaurante. ✅ Clique aqui para se inscrever no canal do g1 SP no WhatsApp Para os empresários, isso amplia o tempo de permanência do cliente e reforça a imagem de marca associada ao lifestyle. Para o público, o DJ cria clima e dá a sensação de evento, transformando o simples jantar em uma experiência coletiva. No restaurante Oli Pizza, da empreendedora Olivia Maita, que começou produzindo pães e pizzas em casa para amigos e familiares, em 2019, e lançou o estabelecimento com foco em pães de fermentação natural e pizzas, a presença de DJs mudou o perfil dos clientes e aumentou o ticket médio. “Começamos com jazz ao vivo às quartas, depois trouxemos DJs às quintas, e logo percebemos um público mais jovem, que chega mais tarde, consome mais drinks e fica mais tempo”, diz Olivia Maita, chef e padeira, idealizadora da casa. Segundo ela, a fusão entre gastronomia e música não é novidade nas capitais globais. “Conheci esse conceito em Nova York, nos Estados Unidos, quando fui com meu marido, há uns 10 anos. As pessoas não querem só jantar, querem viver uma noite completa." Esse movimento encontra respaldo em pesquisas do setor. Segundo levantamento da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o ambiente é um dos três fatores mais importantes na escolha de um restaurante. A categoria foi citada por 12,4% dos entrevistados, atrás apenas de limpeza e atendimento. Em um mercado saturado, investir em música pode ser um diferencial decisivo, avaliam os especialistas. No Seen São Paulo, restaurante no 23º andar de um hotel no Jardim Paulista, além da vista panorâmica da cidade, o local mantém uma programação fixa de música. "Os restaurantes vêm ocupando um espaço cada vez mais protagonista na vida noturna paulistana. Essa mudança reflete uma nova forma de socializar, onde o restaurante se torna o destino final da noite, e não apenas uma etapa dela", afirmou Marco Amaral, vice-presidente de operações e desenvolvimento da Minor Hotels na América do Sul. Nas redes sociais, não é difícil encontrar fotos com cantores, atores e até jogadores de futebol no local. Tudo por uma experiência gastronômica que vai além do prato servido: envolve atmosfera, cenário e música cuidadosamente pensados para transformar o jantar em uma espécie de espetáculo. " A música, selecionada pelos DJs, evolui ao longo da noite, começando em um clima mais tranquilo e ganhando energia, contribuindo para uma atmosfera de celebração e garantindo que cada detalhe reforce a sensação de exclusividade", acredita ele. Restaurante Oli Pizza João de Mari/g1 Comer fora de casa Mas há uma dimensão que vai além da estratégia comercial. A socióloga Camila Crumo, especialista em sociologia do consumo, lembra que o ato de comer fora é sempre simbólico e socialmente construído, além de reforçar a imagem que a pessoa quer passar para os outros. “O gosto não é individual. Ele é socialmente construído. Ao escolher um restaurante, a pessoa também está exibindo seu pertencimento, reforçando vínculos com um grupo que compartilha dos mesmos códigos culturais”, explicou. Isso, segundo ela, reforça a imagem que a pessoa quer passar, mesmo que inconscientemente, aos outros. A socióloga explica que o consumo alimentar, apesar de estar ligado à necessidade biológica de sobrevivência, é intrinsecamente um consumo cultural. Ou seja, é quase impossível separar a alimentação hoje em dia do elemento cultural que a envolve. "Em restaurantes, essa característica cultural se intensifica, e o consumo é muito carregado de elementos simbólicos. Estar em um restaurante significa estar na 'arena do público', um lugar onde se está 'aos olhos dos outros' e onde as pessoas se apresentam", analisa. Portanto, na perspectiva da especialista, ao se apresentar em um restaurante, as pessoas exibem suas escolhas de consumo e, consequentemente, seu gosto — e o gosto não é algo pessoal, mas sim construído em sociedade. O gosto é moldado por diversos elementos da trajetória individual, como a trajetória familiar e escolar, a classe social (não apenas econômica, mas também cultural), o nível de escolaridade, tipo de filmes assistidos, livros lidos, etc Por isso, incluir DJs no salão é também oferecer signos de identidade. Em alguns casos, o repertório privilegia o jazz ou a música instrumental brasileira, criando uma aura de sofisticação para os frequentadores do espaço. Em outros, o rap, o soul e o funk formam trilha para uma sociabilidade mais descontraída. “Alguns estabelecimentos miram prestígio, investem em excelência e experiência estética. Outros miram lucro, atraem gente para sociabilidade e consumo. Mas ambos operam com símbolos que os clientes reconhecem", disse ela. “Não é apenas sobre comida, é sobre estilo de vida." Em busca do set perfeito Se do ponto de vista sociológico a escolha de um restaurante envolve códigos culturais e símbolos de pertencimento, para quem está no comando das pick-ups o desafio é criar um ambiente que sustente a experiência sem afastar o cliente. É nessa lógica que atua a DJ Caroline Barbosa, a Carol Selecta, presença frequente em casas da capital. "É diferente tocar em uma balada, em um restaurante, em um listening bar… são propostas diferentes, eu sou uma DJ eclética, gosto de várias vertentes da música, do reggae ao house, do samba ao UK garage, gosto de tocar música preta." “A brisa é que em restaurantes que eu toco ninguém pede para eu fazer pista”, conta Carol Selecta. “Isso é estratégia. Porque o pessoal de balada não vai sentar para pagar R$ 300 em um jantar. Eles querem ficar em pé, beber, dançar. E o restaurante quer vender comida, não é ‘tunts, tunts, tunts’", analisou. "É eu conseguir tocar um som, uns BPM [um termo musical e fisiológico para a velocidade de um ritmo ou pulso cardíaco] para trás, manter a galera curtindo, trocando ideia e consumindo." Ela, que é residente em um bar de audição no Centro de São Paulo, e já tocou em restaurantes como Braz Elettrica e até cafés como o FFV Café, também na região central da capital, diz que até o volume é pensado para esse objetivo. @carolsperandiofoto Ela, que é residente em um bar de audição no Centro de São Paulo, e já tocou em restaurantes como Braz Elettrica e cafés como o FFV Café, também na região central da capital, diz que até o volume é pensado para esse objetivo. “Tem limite de decibéis. Passou de uma determinada potência, já atrapalha a conversa. Então é tudo planejado para a pessoa ficar ali, comer, tomar um drink, pedir sobremesa… ficar o maior tempo possível", afirmou. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), sons acima de 75 decibéis já podem ser prejudiciais, e o limite seguro de exposição é de 85 dB por até oito horas. Níveis muito altos, como 120 dB, podem causar dor e danos imediatos. A OMS ainda classifica a audição normal até 25 dB e considera perda profunda acima de 90 dB. "Sobre público são dias e dias, às vezes encontro o público mais aberto para absorver o que eu estou fazendo, mas vira e mexe rola um pedido ou outro de música. Alguns lugares em específico é bem difícil de acontecer porque a proposta é escutar o DJ da noite, aí vai de acordo com minha imaginação e curadoria." Queijo camembert empanado e tiramisu no restaurante Oli Pizza. João de Mari/g1 Para o DJ Trusty, veterano na noite paulistana e residente do Oli Pizza, o desafio é traduzir esse desejo na escolha das músicas que irão tocar durante o jantar. Seus sets mesclam soul, funk e clássicos "brasileiros esquecidos", diz ele. “Acho que hoje o público valoriza redescobrir músicas que estavam escondidas, e isso vira parte da memória do jantar.” Na noite de São Paulo desde a década de 1990, ele avalia que a tendência reflete mudanças de comportamento do público jovem, sobretudo depois da pandemia de Covid-19. Com o fechamento de clubes (ou a saída do chão e ida para os topos dos edifícios) e a ascensão de uma geração menos interessada em baladas até o amanhecer — seja por hábitos mais saudáveis ou pela falta de dinheiro —, os restaurantes se tornaram alternativa. "Houve um vazio na noite paulistana. Os restaurantes ocuparam esse espaço, oferecendo experiências híbridas”, avaliou Trusty. Para Olivia, dona do Oli Pizza, essa é justamente a chave do sucesso: “Essa geração busca um lugar onde possa jantar, ouvir música, paquerar, beber um pouco e voltar cedo para casa. O restaurante passou a concentrar tudo isso.” Cardápio não importa muito No mercado de restaurantes, as disputas por clientela não se resumem a cardápio ou preço. Segundo a socióloga especialista em consumo Camila Crumo, o que diferencia os estabelecimentos vai além da cozinha. Ela explica que cada restaurante oferece um conjunto de "códigos" — como decoração, mobiliário, apresentação dos pratos e até o tipo de música ambiente — compreendidos pelos frequentadores e que despertam identificação. “Esses elementos funcionam como marcadores simbólicos, que comunicam a posição social e cultural que o restaurante ocupa e que o cliente busca compartilhar”, afirma. Camila aponta que essa dinâmica pode ser compreendida dentro do que a sociologia chama de "espaço social dos restaurantes". Ou seja, um mapa teórico no qual estabelecimentos com propostas semelhantes tendem a se agrupar, enquanto aqueles que se distanciam em estilo, público e códigos ocupam posições opostas. “Assim, um restaurante de alta gastronomia e um bar de comida rápida não competem diretamente, porque falam a públicos distintos e acionam repertórios simbólicos diferentes. O consumidor não escolhe apenas o prato: escolhe também o valor social que vem com aquela experiência."